CADA POEMA É UM FRAGMENTO DO POEMA GERAL QUE QUINTANA VEIO COMPONDO
DURANTE TODA A SUA VIDA

segunda-feira

ORQUESTRA





A coisa mais solitária do mundo é um solo de flauta

Em compensação a tua cabeça está cheia de borboletas estrídulas

Mas eu deixo tombar das minhas mãos o pandeiro de guizos

E, na verdade, o que eu tenho é uma alma de violoncelo

—- grave, profunda, triste…


[QUINTANA, Mário[ in Velórios sem defunto

terça-feira

QUINTANA - O DEIXADOR INQUIETO



Na postagem anterior (Aniversário de Mario Quintana) ele nos confessa textualmente " Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão". Pois bem o poema abaixo é uma prova disso. Nele Quintana se apresenta como um inquieto.  O deixador inquieto.

O Deixador
Eu tenho mania de deixar tudo para depois...
Depois a contagem das cartas a responder...
Depois a arrumação das coisas...
Depois, Adalgisa...Ah,
Me lembrar mais uma vez de romper definitivamente com Adalgisa!
Depois, tanta, tanta coisa...
Depois o testamento as últimas vontades a morte.
Só porque vai sempre deixando tudo para depois
É que Deus é eterno
E o mundo incompleto
Inquieto...
Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!

Mario Quintana

domingo

ANIVERSÁRIO DE MÁRIO QUINTANA



Neste mês, no dia 30 de julho Quintana completaria 115 anos.
A melhor definição para Mario Quintana, foi feita por ele mesmo, em 1984:
“Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro — o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu… Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo — que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras”.

quarta-feira

COMENTÁRIO SOBRE O LIVRO “BAU DOS ESPANTOS”


 
 
ESPANTOS
Neste mundo cheio de espantos
Longe das mágicas de Deus,
O que existe de mais sobrenatural
São os ateus

 
Tive a oportunidade, nos quase vinte anos em que trabalhei no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, de conviver com o poeta Mario Quintana. Nossas mesas de trabalho, na redação, ficavam vis-a-vis. Chegando à tarde, depois de tomar um cafezinho no bar do jornal, o poeta punha-se a ler sua própria poesia. Invariavelmente. Lá pelo final da tarde, pegava do lápis (às vezes da caneta esferográfica) e começava a rabiscar naquele antigo papel de jornal que nos era oferecido pela redação, antigas resmas de composição, então já reduzidas a toalhas para secar as mãos. Enfim, o poeta, ao final da jornada, às vezes já no início da noite, usava sua imensa máquina de escrever Olivetti 88 e punha-se a digitar (literalmente, porque Mario escrevia com não mais do que quatro dedos, dois de cada mão), com vagar, e eu diria, com método, o novo poema, qual fênix, renascido de outros tantos que o mesmo poeta escrevera e ali deglutira, antropofagicamente. É como se Mario Quintana conversasse permanentemente consigo mesmo, numa espécie de solilóquio continuado, sobre o qual igualmente já tive a oportunidade de escrever, em momento anterior.[3] Aliás, para além do solilóquio, como processo de criação, pode-se registrar o diálogo com o leitor, pressuposto no uso significativo da 2ª pessoa do singular, como procedimento de recepção, antecipado pelo poeta, numa espécie de escolha do leitor, como já o registrou Umberto Eco.[4] Não é de surpreender, assim, que se deva reconhecer um continuum na criação poética de Quintana, resultado dessa autoleitura, dessa constante reflexão em que não apenas palavra puxa palavra, mas poema puxa poema. Por vezes, um único texto pode sugerir tantas outras coisas, que o poeta prefere suspender aquelas potencialidades, interrompendo o verso pela colocação das reticências... seria curioso, aliás, estudar-se a relação entre essa pontuação gráfica, os versos em que ela é usada, e o desdobramento que ela permite desses versos em outros poemas... Mas para isso é preciso paciência... Os temas abordados por Quintana são variados, mas quase sempre surgem em pares, cuja combinação é constituída de opostos: o fim do mundo x a presença da eternidade; Deus x Diabo; poeta x poesia; velho x antigo; passagem do tempo x progresso; anonimato x solidão etc. Os pares antônimos se constroem também a partir de princípios ou conceitos: ausência física x presença pela memória; tempo que corrói a vida x infinitude da morte etc A associação de idéias é uma constante: a preocupação em distinguir claramente os termos, também. Há enormes sutilezas, nessas distinções, como em casos do anonimato x solidão: o anonimato é voluntário, é saudável; a solidão é indesejada, é negativa, O anonimato permite o exercício da identidade, da personalidade, do distanciar-se de si mesmo e assim ver-se de maneira crítica; a solidão pode ocorrer até mesmo – e sobretudo - em meio à massificação. Pode-se afirmar, por isso, que o principal procedimento criativo de Mario Quintana é a reflexão sobre o próprio fazer poético. Para o escritor, o poema é como que a ponta de um iceberg, não apenas da poesia que o poeta contém dentro de si, mas de toda a poesia. O poema é, ao mesmo tempo, um disfarce do poeta: ele parece falar de alguma coisa (aparente) mas, na verdade, está a tocar em um tema bem mais profundo e certo. A poesia, por seu lado, é um encantamento: o poeta se vale de palavras como fórmulas mágicas, criando uma atmosfera que desvela/revela o mundo, produzindo o que poderíamos denominar de enobrecimento do cotidiano. Sendo a poesia irredutível, ela se constitui na invenção da verdade, a partir de um procedimento fundamental: a indagação. A importância dada por Mario Quintana à infância não é nenhum saudosismo ou nostalgia. E, isso sim, a possibilidade de retornar a um momento em que, metodologicamente, o ser humano está disponível para perguntar, descobrir e espantar-se com as suas descobertas. O poeta, desse modo, enquanto uma criança ingênua, é capaz de surpreender a vida em todas as suas possibilidades, valendo-se justamente da dúvida enquanto procedimento de conhecimento – e o poema, enquanto procedimento de socialização desse conhecimento/descoberta.[5] O cerne da obra de Mario Quintana se apóia exatamente nisso: o espanto da descoberta, colocando-se o interesse do poeta menos na realidade do entorno em si mesma e muito mais nas mudanças que ela sofre, com o passar do tempo, A poesia, por conseguinte, concretizada na forma do poema, é como um pacote que deve ser aberto: a leitura do poema é a revelação da surpresa que ele contém, a própria poesia, mas que não é delegável a ninguém mais, senão ao leitor mesmo. Daí a afirmação que encontramos em certa passagem de Na volta da esquina:[6] Os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios de jornais, ou seja, é a partir da realidade mesma, a realidade anônima e cotidiana, que se concretiza a poesia, por aproximação. Baú de espantos não foge a essas perspectivas.

 
Texto de Antonio Hohlfeldt como parte da introdução (O instante, matéria-prima da poesia ) ao livro Baú dos Espantos  edição de 2006 publicado pela Ed. Globo.

DATA E DEDICATÓRIA

Este poema dedico à minha amiga Tais Luso, cujo blog de mesmo nome,  a muito tempo acompanho. Em seu último comentário sobre o poema de Quintana "O Velho Poeta" Tais comentou: "sinto falta da data nas postagens". Pois bem querida amiga, a culpa é toda do Mario que nos deixou a seguinte observação e como não poderia deixar de ser em versos, e que versos.

DATA E DEDICATÓRIA

Teus poemas, não os dates nunca...Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vive-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica pois teus poemas.
Não os dates porém:
As almas não entendem disso...

Mario Quintana in: Baú dos Espantos

sexta-feira

O VELHO POETA

Amanhã (22 de março) completo 62 anos. Meu tempo está terminando. Não tem mais graça comemorar aniversários após os sessenta. Milhões de pensamentos veem em turbilhão e a sensação de que a vida se exauri toma presença mais forte. Recorri ao meu amigo Mario, que já se foi mas deixou uma obra vasta e eterna. Sim a boa poesia, como a boa música é eterna. Encontrei esta joia rara. Não é preciso comentar nada, basta ler e fechar os olhos. Obrigado amigo Quintana.

O VELHO POETA

Um dia o meu cavalo voltará sozinho
E assumindo
Sem Saber
A minha própria imagem e semelhança
Ele virá ler
Como sempre
Neste mesmo café
O nosso jornal de cada dia
inteiramente alheio ao murmurar das gentes.

Chalé da Praça XV (Porto Alegre), onde Mário ia todas as tardes comer dois quindins e tomar seu café, com a presença obrigatória do jornal do dia. Na foto acima o chalé hoje, em baixo com a presença de Mario lendo seu jornal.


terça-feira

COMENTÁRIO SOBRE A OBRA: O APRENDIZ DE FEITICEIRO

 


O Aprendiz de Feiticeiro é a quarta obra da carreira literária de Mario Quintana, publicada em 1950, após os sonetos dA Rua dos Cataventos (1940), as Canções (1946) e os poemas em prosa do Sapato Florido (1948). O título do livro faz referência a uma antiga narrativa alemã, imortalizada pelo poeta romântico Goethe em sua balada Der Zauberlehrling 1 e, posteriormente, por Walt Disney, num longa-metragem em que o seu famoso personagem Mickey fazia o papel do aprendiz de mago. Segundo Quintana mesmo explicaria em um depoimento posterior, 2 o nome do livro se deve ao fato de que, ao conhecer essa narrativa, ele se identificou com a aventura vivida pelo personagem. Lembremos, brevemente, o enredo: Encarregado de limpar o laboratório na ausência de seu mestre, o aprendiz resolve usar um feitiço às escondidas, fazendo com que uma vassoura crie braços e pernas e vá buscar água para que seja feita a limpeza. Tudo corre normalmente, até que ele percebe que deve fazer a vassoura parar, pois o laboratório poderá ser inundado. Não conhecendo as palavras mágicas para contê-la, tem a infeliz idéia de parti-la ao meio. Ocorre, então, uma multiplicação de vassouras, pois cada pedaço transforma-se em outra, que recomeça a tarefa. No final, tendo o ambiente já sido tomado pela água, aparece o Mestre Feiticeiro, que resolve a situação com suas palavras mágicas. Conforme Quintana, no seu caso, ao lidar com forças desconhecidas (as forças da linguagem, sempre imprevisíveis, mesmo para o poeta), o que ocorreu foi uma “multiplicação de poemas”, em vez de uma “incontrolável multiplicação de vassouras”. É como se as palavras fugissem ao seu controle, tornando-se as “palavras em liberdade” que buscavam os poetas surrealistas nos seus exercícios de “escrita automática”. Conforme já observou Gilberto Mendonça Teles, Quintana se coloca como aquele que se surpreende com a própria criação, com a magia da palavra poética, a qual acaba por assumir vida própria, multiplicando os poemas, em aparente desordem, no laboratório do livro.

DORIS MUNHOS DE LIMA  in: O APRENDIZ DE FEITICEIRO: realidade, imaginação e magia  na obra de Mario Quintana. 2008.

sexta-feira

MARGRAFF

                                           MARGRAFF



De uma feita, descobri nas costas da folhinha o seguinte precioso informe:
"O açúcar de beterraba foi descoberto em 1747 por Margraff."
Desde então, nunca mais pude esquece-lo.
E, quando procuro ansioso entre os nevoeiros da memória, uma data esquecida, um nome, uma citação, ei-lo que aparece, implacável, esse Margraff, à prova de balas e de esconjuros. Por quê? Estarei ficando...?
Ou será, o pobre Margraff que tenta desesperadamente sobreviver, transformando-se em idéia fixa?

Mario Quintana in, Sapato Florido, Ed Globo

DEPOIS

                                                DEPOIS



Nem a coluna truncada:
Vento.
Vento escorrendo cores.
Cor dos poentes nas vidraças.
Cor das tristes madrugadas.
Cor da boca...
Cor das tranças...
Ah,
Das tranças avoando loucas
Sob sonoras arcadas...
Cor dos olhos...
Cor das saias
Rodadas...
E a concha branca da orelha
Na imensa praia
Do Tempo.

MARIO QUINTANA, in Poesias, Ed Globo, 2001